quinta-feira, 21 de janeiro de 2010

Poder local e xamãs urbanos: Manuela Carneiro da Cunha

Excertos do artigo:
CARNEIRO DA CUNHA, Manuela. "Pontos de vista sobre a floresta amazônica: xamanismo e tradução" MANA, vol. 4, n. 1, 1998.


Há aqui uma ressonância ¾ que não terá passado despercebida aos antropólogos ¾ com o xamã da "Introdução à Obra de Marcel Mauss" (Lévi-Strauss 1950), com a diferença que Lévi-Strauss, se acredita na pretensão, certamente não subscreve a realidade de uma língua adâmica. Mas a transposição de contradições reais em diferentes códigos, como se, de tanto traduzi-las, fosse possível resolvê-las, a dolorosa sensibilidade do xamã às dificuldades e armadilhas dessas passagens entre códigos que jamais são inteiramente equivalentes, não é nisto que consiste o trabalho do tradutor?

A síntese original, o sistema sintagmático no qual há necessidade de aderência entre o som e o sentido, no qual o som e o sentido se ajustam sem falhas como o fruto e sua pele (Benjamin 1968), tudo isso se dissolveu. O que se trata de (re)construir é uma síntese original, uma nova maneira de pôr em relação níveis, códigos, pô-los em ressonância, em correspondência, de modo que esse mundo novo ganhe a consistência desejada para que se torne evidente (Taylor 1995). Em suma, que adquira um sentido, pois o sentido é, ao fim e ao cabo, a percepção de relações, uma "rede de associações que se referem umas às outras, semelhante a um dicionário ou a um banco de dados relacional" (Crick e Koch 1997:33). Quanto mais essas conexões se multiplicam, mais o sentido se enriquece: fórmulas da neurociência que lembram imediatamente a antiga questão do que, na análise estrutural dos mitos, significa "significar". O trabalho do xamã, sua esfera de competência, é essa tentativa de reconstrução do sentido, de estabelecer relações, de encontrar íntimas ligações. Não é, portanto, a coerência interna do discurso o que se procura, sua consistência advém antes do reforço mútuo dos planos em que se exprime, do habitus em suma.

Um exemplo: entre os Shipibo-Conibo (Gebhardt-Sayer 1986) ¾ grupos Pano ribeirinhos ¾, os textos dos cantos xamânicos obedecem a regras distintas das que regem as melodias. Amplamente improvisadas, as palavras descrevem um itinerário, balizam-no, traçam o sentido de seu percurso. Em contrapartida, as melodias, que formam um corpus que não de umas trinta unidades, são a tradução sonora de desenhos, de motivos pictóricos ¾ os quene (ou kene) ¾ que o dono do ayahuasca exibe ao xamã e que este transpõe simultaneamente para um código sonoro. Este código é decifrável, visto que pode ser retraduzido em uma forma visual. Conta-se (e pouco importa se a história é autêntica) que, antigamente, duas mulheres, sentadas de lados opostos de um grande vaso a ser decorado, eram capazes ¾ sem se verem e unicamente guiadas pelos cantos xamânicos ¾ de pintar os mesmos motivos e de fazê-los se juntarem nas extremidades (Gebhardt-Sayer 1986:210-211). A codificação sonora das visões e sua decifração permitem, assim, obter tanto desenhos imateriais, aplicados sobre os doentes a serem curados, quanto desenhos materializados sobre vasos, tecidos e corpos. Os aromas acrescentam um código olfativo aos precedentes, de tal modo que "os sons, as cores e os odores correspondem".

Carlito é Kaxinawá. Vende picolé nas ruas de Rio Branco, capital do Acre, e vez por outra trabalha como assistente de antropólogos e de uma ONG. Mas é xamã também, misturando técnicas emprestadas dos Yawanaua e Katukina do Gregório e do Tarauacá, combinadas com rituais tomados da umbanda, aprendidos em Belém e Manaus. Sua clientela é formada por sua própria e grande família e por antigos seringueiros dos bairros mais pobres de Rio Branco. Nada disso nos surpreende mais. Tampouco nos surpreendem seu conhecimento das crenças xamânicas ashaninka e seu relativismo.

(...)

Todos os japós são humanos. Isto todo mundo percebe, já que eles vivem em sociedade, e tecem seus ninhos: são, em suma, tecelões como os Ashaninka. Os xamãs que, sob o efeito do ayahuasca, sabem ver de forma adequada, comprovam essa condição humana dos japós: vivem ao modo dos homens, cultivam mandioca, bebem kamarãpi (ayahuasca), bebem cerveja de mandioca (caissuma). São inclusive superiores aos homens, na medida em que observam a paz interna e vivem sem discórdia. São os filhos que Pawa, o sol, deixou na terra, são os filhos do ayahuasca. Entre os japós, pássaros tecelões, o tsirotsi ou japiim (Cacicus cela) ocupa uma posição particular e suscita um interesse muito especial. Os tsirotsi vivem em bandos de uns trinta pássaros, particularmente associados, que tecem seus ninhos muito perto uns dos outros em uma mesma árvore. Escolhem a árvore por ela abrigar ninhos de certas vespas ou formigas cujas picadas são especialmente dolorosas. É esta, diz-se, a sua polícia, que os protege dos predadores, como o gambá, por exemplo. Os tsirotsi são pacíficos e só se tornam ferozes quando é o caso de defender os ovos brancos com pintas contra a cobiça dos tucanos e dos araçaris. O macho e a fêmea guardam os ovos juntos, mas só a fêmea trabalha, ao passo que o macho canta. Nada disso é muito excepcional entre os japós. O que, no entanto, distingue os japiim de todos os outros pássaros, é a capacidade que lhes é atribuída de imitarem os chamados e os ruídos que escutam, sejam estes os cantos de outros pássaros, o tambor dos Ashaninka, o latido dos cães ou o choro das crianças (Pianko e Mendes no prelo).

Os xamãs têm uma associação muito especial com o tsirotsi, o japiim. Como Carlito afirma, este pássaro é um poderoso xamã. Os tsirotsi (ou tsiroti), segundo uma história recolhida junto a outros Ashaninka por Fernandez (1986:70 e ss.), são inclusive os descendentes de xamãs, que o personagem mítico Avireri, aquele que transformou alguns Ashaninka em animais, mudou, por distração, em pássaros. Esses xamãs ¾ pai e filho ¾ sabiam imitar todos os gritos de animais e eram, por conseguinte, grandes caçadores. O filho casou-se com uma mulher de olhos azuis: todos os seus descendentes tinham olhos azuis também. Eis aqui explicitada a relação xamã-caçador, por intermédio do japiim. A particularidade de imitar os chamados de outros animais é posta a serviço da caça. Com efeito, é assim que procede o bom caçador: finge utilizar uma linguagem que não é a sua, uma linguagem de sedução, aquela por meio da qual os machos e as fêmeas se atraem. A relação da caça e da sedução é um tema tipicamente amazônico (ver, p. ex., Descola 1986), mas, aqui, esse tema se encarna em uma linguagem que não comunica, ou melhor, cuja única mensagem é o grito que atrai, que seduz. É um chamariz, uma isca. Um som sem sentido, um som com sentido único.

O japiim fala línguas que não são as suas, línguas estrangeiras que, nele, nada comunicam, exceto a sedução e a predação. Ele é uma ponte ilusória entre formas do ser. Corresponde, no mundo animal, àquela escada xamânica que liga mundos cortados entre si. É notável que na ausência do personagem japiim, utilizado para outros fins entre os grupos Pano da floresta, a mesma associação entre cantos xamânicos, mimetismo sonoro e caça esteja presente entre os yaminahua do Peru (Townsley 1993:454).

(...)

Vimos que na prática xamânica opera um princípio semelhante, e isto não nos deve surpreender, dada a circularidade que opera na construção de esquemas conceituais. Para o xamã de um mundo novo, de pouca valia serão seus antigos instrumentos, as escadas xamânicas que lhe dão acesso aos diversos planos cosmológicos (Weiss 1969; Chaumeil 1983), sua aprendizagem, seus espíritos auxiliares, suas técnicas; montagens de outras técnicas podem ser preferíveis. Mas, ainda assim, cabe-lhe, "por dever de ofício", mais do que pelos instrumentos conceituais tradicionais, reunir em si mais de um ponto de vista. Pois, apenas ele, por definição, pode ver de diferentes modos, colocar-se em perspectiva, assumir o olhar de outrem (Viveiros de Castro 1996). E é por isso que, por vocação, desses mundos disjuntos e alternativos, incomensuráveis de algum modo, ele é o geógrafo, o decifrador, o tradutor.

Vê-se, portanto, que o "perspectivismo" amazônico que Eduardo Viveiros de Castro (1996) pôs em destaque em um artigo notável, e do qual extraiu várias implicações, se manifesta como um esquema em vários planos. Pois o problema geral do perspectivismo, aquele que Leibniz e Giordano Bruno descobriram, é justamente a questão da unidade, do invólucro, da convergência no sentido matemático, da série dos pontos de vista. Em suma, o problema da tradução. Não é sem dúvida fortuito que Leibniz e Benjamin adiantem uma solução semelhante: o que permite a totalização dos pontos de vista singulares e irredutíveis é a ressonância, a harmonia (Benjamin 1968:79, 81; Deleuze 1988:33). Na Amazônia, diríamos: é o xamã.

(...)

De maneira fantasmática e à falta de outras instâncias, o controle se realiza pela conjunção, vista acima, entre o que é mais local e o que é mais global: Crispim, criado a jusante, se estabelece nas cabeceiras, na divisão das águas. O local mantém seus poderes, é até a fonte dos maiores poderes, e é nele que os xamãs urbanos irão prover-se. Mais uma vez, é seguindo os meandros de raciocínios aparentemente contraditórios que se pode esperar ultrapassar os paradoxos (Taylor 1995). Cabe, então, ao mais fraco, àquele que se acha o mais a montante na cadeia, ao colonizado, ao estrangeiro, efetuar uma tradução privilegiada: é por seu intermédio que o novo penetra o mundo (Bhabha 1994). Mas a inanidade da empresa permanece. Poder-se-ia ver nos esforços de tradução, de totalização, que evoquei, a tentativa, sempre votada ao fracasso, em qualquer escala que se a considere ¾ e no entanto sempre recomeçada ¾ de construir sentido.

Nenhum comentário: