quarta-feira, 20 de janeiro de 2010

Antropologia, Religião, Experiência

DE ROSE, Isabel Santana. Espiritualidade, terapia e cura: um estudo sobre a expressão da exepriência no Santo Daime Dissertação de Mestrado em Antropologia Social. Universidade Federal de Santa Catarina.

4. Sobre o estudo da experiência

Este trabalho pretende enfocar a expressão da experiência. O enfoque na experiência está relacionado a uma mudança de perspectiva na própria antropologia. A partir da década de 80, vemos um deslocamento da ênfase em estruturas e sistemas para pessoas e práticas e de análises estáticas e sincrônicas para análises diacrônicas e processuais. De acordo com Sherry Ortner (1994), é neste período que cresce o interesse em estudos que enfocam dois eixos que envolvem uma série de termos inter-relacionados. No primeiro eixo temos prática, práxis, ação, interação, atividade, experiência, performance e,no segundo, agente, ator, pessoa, self, indivíduo, sujeito. Para Ortner, a práxis é o símbolo-chave desta nova orientação teórica.
Victor Turner também chama a atenção para o surgimento de um “post-modern turn”
(1987:76) na antropologia, no qual passariam a ser enfatizados os processos e as
qualidades processuais. Assim, no “post-modern turn”, a performance e a apresentação
do self na vida cotidiana estão no centro das atenções. O enfoque dirige-se para o agente empírico e para a maneira como este experiencia as coisas.
Segundo Turner (1981), é preciso ir além das dimensões cognitivas da experiência; é preciso levar em conta aspectos como a volição e o afeto. Ele afirma que o poder transformador do ritual não está apenas nos aspectos cognitivos dos seres humanos, pelo contrário, é retirado “from their human depths” (1981:156). Desta maneira, para poder compreender o ritual, é importante levar em conta todos os sentidos e percepções dos participantes e performers.
É também neste contexto de mudanças e revisões que o corpo torna-se uma
preocupação central da antropologia, passando a constituir uma dimensão que possibilita pensar vários aspectos da cultura e do self (Csordas, 2000). Indo além de uma tendência de pesquisas anteriores que tratavam o corpo como uma “tabula rasa”, propõe-se que este seja visto como uma fonte de agência e intencionalidade. Emergem estudos que sugerem que a cultura e o self podem ser entendidos a partir do embodiment31 como uma condição existencial na qual o corpo é a fonte subjetiva ou o terreno intersubjetivo da experiência (Csordas 2000:181). Estas novas teorias criticam dualidades conceituais tais como mente/corpo, sujeito/objeto, sexo/gênero, corpo/embodiment. A questão central passa a ser a maneira pela qual o corpo é uma condição essencial da vida. Contrapondo-se a muitas teorias que reduzem a experiência à linguagem, discurso e representação, há um resgate da tradição fenomenológica numa busca de transcender essas reduções.
Neste contexto de estudos centrados na experiência, Thomas Csordas (1997) propõe uma abordagem que denomina de “cultural phenomenology”, caracterizada por “a concern for synthesizing the immediacy of embodied experience with the multiplicity of cultural meaning” (1997:VII). A partir desta abordagem, a proposta de Csordas é entender como a cura religiosa funciona e qual a natureza de sua eficácia terapêutica. Em um sumário das hipóteses sobre a eficácia ritual da cura religiosa, ele chama a atenção para o fato de que a experiência dos pacientes na cura nunca foi examinada. A premissa estabelecida pelo autor para o estudo dessa experiência é “that there is an experiential specificity of effect in religious healing” (1997:3). Segundo Csordas, o locus dessa eficácia é o self. A tarefa que
ele se propõe, portanto, é formular uma teoria do self que permita especificar os efeitos transformativos da cura religiosa.
Os estudos centrados na experiência e na práxis nos oferecem uma nova perspectiva para se pensar tanto a teoria antropológica quanto a pesquisa etnográfica. No âmbito teórico, são colocadas novas perguntas, procurando transcender velhas dicotomias e complementar ou substituir conceitos consagrados. Já no âmbito da etnografia, constitui-se uma nova maneira de olhar para o objeto de pesquisa. Este novo olhar, dinâmico, diacrônico, processual, procura enxergar dimensões da experiência que antes não eram levadas em conta ou não eram enfatizadas, e mais, procura integrar as várias dimensões da experiência na análise.
Esta perspectiva é especialmente interessante para tratar das experiências de estados modificados de consciência e especificamente das experiências com a ayahuasca. O estudo destas experiências evidencia a articulação das diversas dimensões da experiência e desafia dualidades e dicotomias que costumam caracterizar as análises antropológicas.
É nesse sentido que penso que a busca de um diálogo entre a antropologia e a
fenomenologia pode ser muito produtivo para o estudo das experiências relacionadas aos estados modificados de consciência induzidos pela ingestão da ayahuasca. Assim, foi a partir dessa perspectiva que me propus a olhar para as expressões das experiências dos processos de saúde, doença e cura, tomando como ponto de partida para a minha observação uma comunidade do Santo Daime. Também procurei articular abordagem teórica e prática metodológica, buscando uma metodologia que possibilitasse considerar várias formas de expressão da experiência. O que se pretende, portanto, é fazer uma reflexão sobre as contribuições que este tipo de abordagem pode trazer para a investigação do fenômeno das “religiões ayahuasqueiras brasileiras”, colocando novas perguntas e também sugerindo outra perspectiva para as que já foram levantadas e discutidas.

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