quinta-feira, 29 de novembro de 2012

LEA, Vanessa (2012) Riquezas Intangíveis de Pessoas Partíveis

Foi publicado, recentemente, pela editora da Universidade de São Paulo, o livro "Riquezas Intangíveis de Pessoas Partíveis: os Mebêngôkre (Kayapó) do Brasil Central", de autoria da etnóloga Vanessa Lea. A autora focaliza a análise nas relações que conectam as pessoas no processo de transmissão de nomes e riquezas (nekretx) no âmbito das redes associadas às matricasas mebêngôkre, argumentando que os Metyktire (subgrupo mebêngôkre) são matrilineares, diferentemente do que apontam estudos realizados nas décadas de 1970/80. Essa análise é inspirada nas reflexões de Lévi-Strauss sobre as "sociedades de casas" e de Marilyn Strathern sobre a circulação de riquezas na Nova Guiné. O livro descreve as práticas de nominação dos mebêngôkre, que costumam transmitir um conjunto variado de nomes (bonitos, comuns e de brincadeira) e nekretx para as gerações mais novas, através de longas cerimônias organizadas para esta finalidade. De leitura agradável, o texto aborda um tema central na vida mebêngôkre a partir de uma perspectiva etnográfica permeada por análises teóricas de maior fôlego, permitindo comparações com outras sociedades Jê do Brasil Central.

A publicação já está disponível nas livrarias. Segue abaixo um pequeno trecho da introdução do livro (para divulgação):

"De modo geral, há pouca relutância em aceitar os bens industrializados. Como será demonstrado em outros capítulos, a incorporação de bens de fora de sua sociedade sempre fez parte da cultura Mebêngôkre. Por exemplo, muitos anos atrás aprenderam com os índios Yudjá a construir canoas. Os Metyktire afirmam querer coisas de kube, mesmo coisas que eles mesmos fabricam, como fio de algodão vermelho. Raciocinam afirmando que gostam das coisas do kube como os kube gostam de coisas de índio - bordunas, colares, cocares, cestos, etc.

Os Metyktire me bombardearam com perguntas sobre a confecção de cobertores, panelas de metal, canetas, papel etc. Estavam incrédulos que eu pudesse usar coisas sem nunca ter observado como são fabricadas. Suspeitavam que havia alguma espécie de especialização, perguntando, por exemplo, se os kube americanos são aqueles que manufaturavam cartuchos caibre 38. Um homem perguntou se aqueles que fazem velas ficam ricos, devido ao preço relativamente alto das velas, ou se as dão de graça (kajgô).

A noção de dinheiro é ainda mais enigmática e misteriosa. O chefe Metyktire me perguntaram quem fabrica dinheiro, como e onde. O chefe em Kretire queria saber quem é o dono do dinheiro e para que o utiliza. Um homem alegou que os kube precisam simplesmente (tu) dar coisas aos índios porque têm dinheiro no banco, que recebem do chefe grande; para obtê-los basta fazer fila. Os Metyktire pedem dinheiro para qualquer visitante kube argumentando que os 'índios não têm dinheiro'. (...)

No início da minha estada com os Metyktire me decepcionou o fato de eles falarem dia e noite sobre nekretx, referindo-se aos bens industrializados. Para europeus, pós-1968 como eu, sociedades ameríndias representavam a possibilidade de viver em harmonia com a natureza, e de oferecerem alternativas às mazelas da sociedade pós-industrial. Estava intrigada em saber por que os bens industrializados eram designados por uma palavra tão evidentemente mebêngôkre, e então decidi investigar a etimologia de nekretx. Isso significou mergulhar num mundo fantástico, digno da imaginação de Borges. Fui seduzida pela riqueza (nekretx) dos Mebêngôkre ao ponto de torná-lo o objeto principal de minha pesquisa. Nekretx e o sistema onomástico dos Mebêngôkre são dois lados da mesma moeda: ambos são fundamentais para entender a organização social dos Mebêngôkre porque implicam um conceito de casa como pessoa jurídica (personne morale, em francês), composta de pessoas partíveis (conforme será esclarecido a seguir)."


Referência: LEA, Vanessa. 2012. Riquezas Intangíveis de Pessoas Partíveis: os Mebêngôkre (Kayapó) do Brasil Central. São Paulo: Editora Edusp.

quarta-feira, 7 de novembro de 2012

Lançamento de “Imagens de Cura: Ayahuasca, imaginação, saúde e doença na Barquinha”, de Marcelo S. Mercante, pela Editora Fiocruz.

Em situação de doença ou sofrimento, muitas pessoas buscam uma religião. Não é diferente nas religiões ayahuasqueiras, cujos rituais são conhecidos por utilizar uma bebida à base de Ayahuasca, uma substância psicoativa. O Santo Daime é a mais conhecida dessas religiões, mas existem outras, como a União do Vegetal e a Barquinha – esta última restrita ao Acre. Pessoas em tratamento de saúde com Ayahuasca vivenciam e relatam mirações após o consumo da bebida, cuja eficácia – seja simbólica, seja física – tem sido bastante discutida. Entender o papel dessas mirações, mas ultrapassando o tradicional debate sobre a ação da substância: esta é a proposta do livro Imagens de Cura: Ayahuasca, imaginação, saúde e doença na Barquinha, lançamento da Editora Fiocruz. O autor, Marcelo S. Mercante, estudou um centro ligado ao sistema religioso da Barquinha. O diferencial dessa pesquisa é que ela compreende as mirações a partir do diálogo entre múltiplos saberes, como antropologia, psicologia, filosofia da mente, estudos da consciência, química, neurofisiologia e espiritualidade.

“Sim, os elementos espirituais devem ser levados em conta ao se trabalhar com e sobre a consciência. Não clamo aqui pelo retorno de uma metafísica, mas sim que se leve em conta um fenômeno que tem forte influência na vida de milhares de indivíduos”, defende Mercante na apresentação do livro. “A consciência é um palco onde interagem neurônios, elementos químicos, fatores psicológicos, culturais, sociais e espirituais”, define.

De acordo com o autor, por um lado, a cultura influencia o modo como a pessoa experiencia o mundo espiritual. Por outro, durante um ritual religioso, o indivíduo “tem a chance de se tornar consciente de outros níveis de existência, além das tarefas convencionais diárias”. Ou seja: o mundo espiritual também pode influenciar a cultura, modificando-a.

“Na medida em que se aprofunda o processo de cura, considera-se que qualquer problema tem uma fonte espiritual, e a distinção entre doença física e espiritual é diluída”, conta Mercante. Entendidas como um desequilíbrio de forças, as doenças são curadas quando se restabelece a sintonia. “A principal expressão ativa da cura seria o ato de ajudar outras pessoas a atingirem a mesma experiência – a caridade”, comenta. Embora, em alguns casos, as doenças sejam completamente tratadas através das cerimônias de cura, em outros, apenas a parte espiritual é reequilibrada. “E recomenda-se procurar um biomédico ocidental para cuidar do corpo físico”, observa o pesquisador.

O ritual religioso estudado por Mercante inclui música, canto, dança e orações, além da ingestão da Ayahuasca. O ritual e a bebida se combinam, na consciência dos indivíduos participantes, com processos de autoconhecimento e elementos do espaço espiritual. Essa combinação resulta nas mirações, “as imagens mentais espontâneas experienciadas durante o transe induzido pela ingestão ritual de Ayahuasca”. Para receber uma miração, não basta vontade: é preciso merecê-la. E, após o recebimento da miração, ocorre um momento de interpretação e entendimento, estabelecendo-se “os elos entre as imagens mentais e o mundo do dia a dia”, explica Mercante.

Dessa forma, a miração é também uma mediação, pois ela envolve corpo, sentimentos, emoções, o espaço espiritual e a mente. “Os processos de cura estariam também conectados com a mudança de percepção de si mesmo”, diz o autor. Assim, no processo de cura, a percepção do indivíduo como sendo formado por várias partes isoladas – corpo físico, mente, emoções, espírito – dá lugar à consciência que integra todas essas partes em um indivíduo total. Lembrando que a fé é muito importante em qualquer processo de cura, o autor destaca que as mirações podem ser “não somente a fonte de imagens de cura, mas também a fonte da cura, uma cura que, de forma ampla, envolve o sujeito como um todo”.

O livro é fruto da tese de doutorado de Mercante realizada na Saybrook University, um instituto interdisciplinar de pós-graduação, nos Estados Unidos.