segunda-feira, 30 de agosto de 2010

O Cristo de Giotto di Bondone




Hoje, lendo "Francis Bacon: lógica da sensação", de Gilles Deleuze, me deparo com este quadro surpreendente, acompanhado da fantástica leitura de Deleuze sobre esta pintura:

"(...) o Cristo de Giotto, transformado num pipa em pleno céu, verdadeiro avião, que lança sua cicatriz sobre São Francisco, enquanto as linhas hachureadas do percurso da cicatriz aparecem como as marcas livres com as quais o santo maneja os fios do avião pipa."

Achei muito interessante este Cristo-pipa, que parece estar sendo manejado por um São Francisco que parece dançar sobre a terra. As linhas que ligam Francisco e o Cristo me fizeram sentir como se não fosse possível saber se é Cristo quem faz Francisco dançar, ou se é Francisco quem faz Cristo voar. As linhas são a relação, linhas exatas do titoreiro e seu boneco: metáfora preferida de Deleuze para o conceito de agenciamento.

Mais para além do agenciamento, a partir da relação que as linhas entre Francisco e Cristo supõem, há aqui uma idéia da relação envolvendo agências do sobrenatural, ao mesmo tempo em que é também uma imagem carregada de um sentido de descontinuidade, imediação, entre Francisco e Deus, na forma de Cristo-pipa.

domingo, 29 de agosto de 2010

Deleuze, Figura, figuração

Deleuze vai dizer que as duas formas de figuração – o “conjunto visual provável” e a “Figura visual improvável” –, “a figuração apesar de tudo conservada e a figuração reencontrada, a falsa fiel e a verdadeira, não são de forma alguma da mesma natureza” (2007, p.101), o que se produz entre elas é um salto, uma deformação, o surgimento da Figura. Neste caso, a Figura está representada pela imagem imprecisa, pouco nítida e deformada de Narciso refletida no lago. Deleuze sugere uma espécie de espaço movente e possível, um abismo que abre as dimensões sensíveis, entre o que ele chama de “primeira figuração” e de “segunda figuração”, ou seja, entre um conjunto visual provável, que é deformado, alterado, e outro que tem a ver com um gesto para tornar a figura visual improvável; diz ele:



Produziu-se entre as duas um salto, uma deformação, o surgimento da Figura no próprio lugar, o ato pictural. Entre aquilo que o pintor quer fazer e o que ele faz houve necessariamente um como, um “como fazer”. Um conjunto visual provável (primeira figuração) foi desorganizado, deformado por traços manuais livres, que, reintroduzidos no conjunto, vão tornar a Figura visual improvável (segunda figuração). (Deleuze, 2007, p.101)



Esse mover incessante de um espaço entre as duas possibilidades figurativas, a “primeira figuração” e a “segunda figuração”, ou esta oscilação do ato pictural, dá origem ao que Deleuze vai definir como “histeria” – que é uma histeria da própria pintura e não uma histeria do pintor. É a pintura que se apodera do olho pelas cores e pelas linhas, o olho agora livre e transitório. A histeria revelaria, para Deleuze, uma presença violenta que toma posse do olho, que faz ver aquilo que se pode chamar de “presença”. Dessa forma, a histeria seria algo que habita os corpos em movimento, os corpos intensivos, vibrantes, a Figura que se forma a partir desse traço livre, a partir de um salto ou de uma deformação. Para Deleuze, a Figura em Bacon é a presença do corpo sem órgãos já definido por Artaud, o corpo ocupado por intensidades, o corpo vivo, histérico, porém não orgânico: o corpo-desejo, quando desejar é o ato intenso de querer o querer, de desejar o desejo.

(...)

Deleuze aponta que a Figura é o corpo que se esforça para se tornar Figura, que a Figura é o corpo que se move, que vibra, que salta e, talvez por isso, se possa dizer que é através deste corpo alterado e vibrante que se pode tentar interromper a “catástrofe” no sentido que Benjamin a entende, ou seja, que as coisas continuem no mesmo lugar. Deleuze vai dizer, a partir de Bacon, que este mover se assemelha a um espasmo: “o corpo como plexus, seu esforço ou sua espera de um espasmo.” (Deleuze, 2007, p.23) Assim, a Figura se monta como espasmo, ou seja, como arroubo, êxtase, exaltação, paralisia ou espanto, que pode ser ainda uma forma de contração involuntária, inconsciente e que se realiza sem a intervenção da vontade. Dessa forma, segundo Deleuze, Bacon parece construir a sua cena histérica, por dentro dos espasmos, dos saltos e das deformações, “sempre o corpo que tenta escapar por um de seus órgãos, para se juntar a grande superfície plana, à estrutura material.” (Deleuze, 2007, p.24) Tudo isso pode ser lido como sensação, como forma sensível, que são também possibilidades de saída da narração ou da figuração em direção à Figura, à figura em si ou, como define Giulio Carlo Argan, em direção a “uma objetividade superior, uma condição ideal inerente ao ser do objeto”[4] (Argan, 1987, p.80)

Júlia Studart, in ZUNÁI - Revista de Poesia & Debates (http://www.revistazunai.com/ensaios/julia_studart_o_fantasma_e_o_desejo.htm)

terça-feira, 24 de agosto de 2010

São Francisco de Assis - biografia de Julien Green (breves notas)

Sobre a mudança de uma vida nobre para uma vida simples, a incompreensão do pai:
"A economia é uma coisa, mas uma aparência simples demais é outra coisa, e aborrecida quando se é o filho de um dos burgueses mais ricos." (p. 54) É incrível como os pais criam o maior drama quando seus filhos resolvem se vestir esfarrapados.

"Deus tinha lhe revelado... restaurar as paredes de sua Igreja em perigo." (p. 56)

A cruz que esperava Francisco:
"Preferes o amargor à doçura, se queres me conhecer." (p. 58)

"Calmo e firme, o suave revoltado declarou que qualquer violência era inútil: ele nunca voltaria para casa." (p. 63) - aqui, Green faz uma análise sobre a posição dos pais. Na página 70, Green fala em termos de "desastre familiar".

Pág. 72: o encontro com os amigos do passado festivo. Outros suam pelo pão, uns esmolam - quem é mais digno aos olhos de Deus?

"porque a heresia é a revolução" (p. 92)

sexta-feira, 20 de agosto de 2010

Revista de Antropologia Social - Número Especial sobre Etnografia

Revista de Antropologia Social - Madrid.

Vol. 17, 2008.

Artigos sobre etnografia e fazer etnográfico.
Um do George Marcus, outro sobre autoetnografia norteamericana (Castaneda?)

http://www.ucm.es/BUCM/revistasBUC/portal/modulos.php?name=Revistas2&id=RASO

(neste site, todos os outros n.s da revista e de outras)

A pobreza, para os evangélicos neopentecostais

Encontrei uma análise bastante boa sobre o que significa a pobreza, do ponto de vista cosmológico dos evangélicos pentecostais. Está no artigo de Fábio Lanza e Cláudia Neves da Silva (UFPR), intitulado "Pentecostalismo e Teologia da Libertação: a busca de respostas para enfrentar os problemas sociais", e foi apresentado na RAM 2009.


"Esperam que a religião lhes forneça as respostas de como enfrentar as constantes dificuldades materiais e financeiras. Se a busca para enfrentar as agruras cotidianas se dá no plano espiritual porque depende da fé de cada um em um deus poderoso e onipotente, as razões para existirem homens e mulheres em situação de extrema pobreza também não estariam fora deles, mas em uma esfera interna que somente cada indivíduo poderia superar. A pobreza material poderia ser decorrência da pouca fé em Deus, da desobediência às suas determinações. Por esta razão, nos cultos é exaltada a obediência a Deus e às suas palavras.
Nesse sentido, a pobreza para aqueles que compartilham essa concepção de mundo, decorreria de uma situação individual, tanto do que tem mais, porque movido pelo egoísmo, pelo anseio do ganho fácil, que o leva a explorar seus empregados, pagando-lhes salários injustos e a não ajudar os mais necessitados, quanto do que nada tem, porque uma força fora deste mundo, maligna, o estaria impedindo de prosperar, de ter um emprego, a casa própria. Somente pela fé em Deus e em seu filho, Jesus Cristo, seria possível superar esta força que estaria dominando a vida do crente."
(LANZA e SILVA, 2009, p. 13)


É muito interessante perceber como, a partir desta análise, dentro desta cosmologia um problema social é compreendido como um problema individual, de personalidade, ou de falta de esforço pessoal. Se a pessoa não tem emprego, não é porque o Estado se privatizou ou porque falta emprego no país devido a situação de neocolonialismo: é porque a pessoa não está se esforçando, é porque o demônio está impedindo ela de arrumar um emprego.

Não é explícito, mas fica nas entrelinhas de seu texto que considera que um dos fatores do sucesso das igrejas evangélicas, no momento em que quem era católico começa a virar evangélico, é que a igreja evangélica possibilita, muito mais que a católica, uma aproximação do fiel com o Deus sobrenatural: é um fiel que agencia o sobrenatural, sem mediações humanas tipo padre. Uma ampliação da análise desse fator é dizer que esta agência do sobrenatural confere poder, ou "ilusão de poder" - então quem é apenas uma doméstica fora do templo, no templo é a invocadora do Espírito Santo, é a fortalecedora de exorcismos. E é claro, esta aproximação maior com o sobrenatural certamente dependeu da inserção de mais entidades neste cosmos sobrenatural - como os exus, as pombagiras, os espíritos populares já tradicionalmente consagrados por sua característica de poderem ser incorporados pelo homem no transe.

Um outro fator apontado no texto é que aquelas igrejas evangélicas que surgiam, ofereciam soluções rápidas para tormentos físicos e emocionais.

Toca de Assis na RAM

Saíram todos os artigos apresentados na RAM 2009 no site:

http://www.ram2009.unsam.edu.ar/paginas/GT.html

Entre eles, no GT 56 - Religiones en transformacion en las ciudades latinoamericanas, encontrei um artigo que é uma pesquisa sobre a Toca de Assis. A autora é a Patricia Borges da Silveira Bezerra, da UFRJ (orientada pela Cecília Mariz) e o artigo se chama "Toca de Assis: continuidades e rupturas no catolicismo contemporâneo".

Olhar Assassino

"Peguei um avião, mas minha alma ficou presa no barco, junto com os planos de todos os caranguejos e sururus, a passear. Entranhei na terra e acho que enterrei meus sonhos lá nas raízes daquele mangue. Volto para a lama. Até o pescoço dessa cidade." (Carol Bazzo)


Quando voltei para Banzo, vi tudo estranhado.

Em Brisa Salgada, todos olham para todos de cima para baixo: reparam na roupa. Mas em Banzo, as pessoas se olha com um olhar de assassino. Olhar penetrante, direto nos olhos, acompanhado de uma cara de maldade extrema. Pensei que iam me matar naquelas ruas.

Em Banzo, cidade bruta, não há beleza. E os peixes são enlatados, ficam mortos nestas latas em prateleiras de supermercados por meses, esperando serem comprados. É peculiar esta tristeza de Banzo. Pois em Brisa Doce, também grande cidade, se a pessoa naquelas ruas atoladas de carros e buzinas, sente fome, vai a uma das tantas barraquinhas que existem nas calçadas e encontra: vatapá, maniçoba, tacacá, salada de frutas com creme de leite, açaí com guaraná, vitaminas, sucos com guaraná, tudo a preços módicos. Mas em Banzo, só existe barraquinha de cachorro-quente.

Fizeram de Banzo um lugar tão feio, tão inóspito que o esporte preferido de seus moradores é criar quimeras. seja em suas mentes criativas, seja em caixinhas de luz. Não tem vontade de sair de casa porque é frio, não tem vontade de sair de casa porque lá fora tudo é cinza, é asfalto, é dor.

A Revolução Biográfica

Aquelas músicas dos anos oitenta, tipo Zélia Duncan e Legião Urbana, diziam que alguém estaria em um apartamento perdido na cidade tentando acreditar que o mundo iria melhorar. De uns tempos prá cá, as formas de ação acerca da crença na mudança do mundo mudaram: estes alguéns andam saindo de seus apartamentos e mudando a si próprios.

Já há algum tempo tenho pensado nisso. Lia o Ulrich Beck, que fala algo do tipo "para transformações sociais, soluções biográficas" e via isso acontecendo naqueles jovens ascéticos que se transformavam para agir sobre a pobreza das ruas. Pois bem, estive em Recife e encontrei uma outra amostra comprovativa deste fenômeno.

Agosto de 2010. Em uma praça de Boa Viagem, aonde acontece uma feira típica aos finais de semana, encontramos Mariana, uma artesã de dreads nos cabelos curtos, vestindo roupas despojadas, uma hippie, como muitos diriam. Mariana contou sobre seu estado atual de artesã da seguinte forma: "Eu já rodei todo esse Brasil por conta do meu trampo. Eu era assistente social, tentava ajudar as pessoas, acabar com a desigualdade. Mas fui percebendo que esse negócio de mudar o mundo era impossível. 'Quer saber? Em vez de ficar aqui tentando mudar o mundo sem conseguir, eu vou é mudar eu mesma.' Larguei tudo e saí pro mundão, vivendo de artesanato."