domingo, 29 de agosto de 2010

Deleuze, Figura, figuração

Deleuze vai dizer que as duas formas de figuração – o “conjunto visual provável” e a “Figura visual improvável” –, “a figuração apesar de tudo conservada e a figuração reencontrada, a falsa fiel e a verdadeira, não são de forma alguma da mesma natureza” (2007, p.101), o que se produz entre elas é um salto, uma deformação, o surgimento da Figura. Neste caso, a Figura está representada pela imagem imprecisa, pouco nítida e deformada de Narciso refletida no lago. Deleuze sugere uma espécie de espaço movente e possível, um abismo que abre as dimensões sensíveis, entre o que ele chama de “primeira figuração” e de “segunda figuração”, ou seja, entre um conjunto visual provável, que é deformado, alterado, e outro que tem a ver com um gesto para tornar a figura visual improvável; diz ele:



Produziu-se entre as duas um salto, uma deformação, o surgimento da Figura no próprio lugar, o ato pictural. Entre aquilo que o pintor quer fazer e o que ele faz houve necessariamente um como, um “como fazer”. Um conjunto visual provável (primeira figuração) foi desorganizado, deformado por traços manuais livres, que, reintroduzidos no conjunto, vão tornar a Figura visual improvável (segunda figuração). (Deleuze, 2007, p.101)



Esse mover incessante de um espaço entre as duas possibilidades figurativas, a “primeira figuração” e a “segunda figuração”, ou esta oscilação do ato pictural, dá origem ao que Deleuze vai definir como “histeria” – que é uma histeria da própria pintura e não uma histeria do pintor. É a pintura que se apodera do olho pelas cores e pelas linhas, o olho agora livre e transitório. A histeria revelaria, para Deleuze, uma presença violenta que toma posse do olho, que faz ver aquilo que se pode chamar de “presença”. Dessa forma, a histeria seria algo que habita os corpos em movimento, os corpos intensivos, vibrantes, a Figura que se forma a partir desse traço livre, a partir de um salto ou de uma deformação. Para Deleuze, a Figura em Bacon é a presença do corpo sem órgãos já definido por Artaud, o corpo ocupado por intensidades, o corpo vivo, histérico, porém não orgânico: o corpo-desejo, quando desejar é o ato intenso de querer o querer, de desejar o desejo.

(...)

Deleuze aponta que a Figura é o corpo que se esforça para se tornar Figura, que a Figura é o corpo que se move, que vibra, que salta e, talvez por isso, se possa dizer que é através deste corpo alterado e vibrante que se pode tentar interromper a “catástrofe” no sentido que Benjamin a entende, ou seja, que as coisas continuem no mesmo lugar. Deleuze vai dizer, a partir de Bacon, que este mover se assemelha a um espasmo: “o corpo como plexus, seu esforço ou sua espera de um espasmo.” (Deleuze, 2007, p.23) Assim, a Figura se monta como espasmo, ou seja, como arroubo, êxtase, exaltação, paralisia ou espanto, que pode ser ainda uma forma de contração involuntária, inconsciente e que se realiza sem a intervenção da vontade. Dessa forma, segundo Deleuze, Bacon parece construir a sua cena histérica, por dentro dos espasmos, dos saltos e das deformações, “sempre o corpo que tenta escapar por um de seus órgãos, para se juntar a grande superfície plana, à estrutura material.” (Deleuze, 2007, p.24) Tudo isso pode ser lido como sensação, como forma sensível, que são também possibilidades de saída da narração ou da figuração em direção à Figura, à figura em si ou, como define Giulio Carlo Argan, em direção a “uma objetividade superior, uma condição ideal inerente ao ser do objeto”[4] (Argan, 1987, p.80)

Júlia Studart, in ZUNÁI - Revista de Poesia & Debates (http://www.revistazunai.com/ensaios/julia_studart_o_fantasma_e_o_desejo.htm)

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