quarta-feira, 7 de julho de 2010

Roger Bastide

"... quando a revolta política é impossível, ela se dá, para exprimir-se, um caráter religioso." - Roger Bastide, O Sagrado Selvagem.

"... o desejo de uma sociedade "outra", impossível de realizar politicamente porque não estruturada e não pensada conceitualmente, poderia assim mesmo se exprimir, senão em um discurso coerente e construtivo, ao menos em gritos desarticulados, em gestos sem significação, logo em puro desencadeamento de selvageria." (idem)

Esta des-domesticação do transe seria consequência de uma crise das instituições religiosas e da anomia social causada pela urbanização (neste segundo ponto, Bastide é bem durkheimiano)

"Toda Igreja constituída tem, sem dúvida, seus místicos, mas ela desconfia deles, ela lhes delega seus confessores e seus diretores para dirigir, canalizar, controlar seus estados extáticos, quando ela não os prende em algum convento que seus gritos de amor perdido não possam perfurar." (idem)

"Quer aceitemos ou não o ponto de vista de Durkheim sobre os estados de efervescência social onde surgiria a religião, um fato é certo: é que estes estados de efervescência não são duráveis - eles são esgotáveis, escreve Durkheim. Há, portanto, em seguida, uma recaída do fervor sociológico; a religião se desenvolve a partir dessa "recaída" como instituição de gestão da experiência do sagrado. Esta "administração" do sagrado pela igreja tem um valor positivo, certamente: ela permite sua continuação sob forma de uma comemoração, e como uma lembrança ensurdecida - mas, por outro lado, a instituição se volta contra o vivido, para aprisioná-lo atrás das grades de seus dogmas ou de sua liturgia burocratizada, de modo que ele não desperte mais, em inovações perigosas, em um outro discurso além do único discurso aceito pela ortodoxia, ou não se exalte na desmedidamente." (idem)

Nos anos 70 e 80, muitos criticaram Roger Bastide por seu "etnocentrismo às avessas", onde, adepto do candomblé, delegava a umbanda e a macumba um estatuto de "sagrado inautêntico". Essa mesma galera o criticava por ser muito durkheimiano, ao conferir à religião uma conceitualização conectada a igreja, ordem, comunidade; versus a magia, individualismo e erotismo desenfreado que caracterizaria o sagrado inautêntico da umbanda e macumba. Na minha opinião, acho que essas pessoas não devem ter lido o ensaio O Sagrado Selvagem, que Bastide escreve em 1975: este ensaio é um verdadeiro elogio à mística desordenada e contracultural, ou contra-sociedade (como parece preferir o autor) do sagrado des-domesticado:

"Porque estes sagrados revoltados desembocam em utopias, em construções da razão, em programas planificados de transformação da sociedade: o Novo cristianismo de São Simão em uma Republica de Produtores - a religião harmoniosa de Charles Fourier em um Novo Mundo industrial - o verdadeiro cristianismo de Etiénne Cabet em um comunismo messiânico. Porque, igualmente, todos esses sagrados oníricos no fim das contas acabaram em heresias, ou seja, em igrejas paralelas, portanto em instituições; caos, sem dúvida, na origem de sentidos desregrados, sentimentos liberados, imaginação desenfreada, mas caos que acaba por se dar normas, como se houvesse uma lógica no excesso que não seria possível não respeitar, e que arrasta atrás dela, na liturgia e dogmática das novas seitas inventadas, abas inteiras da memória coletiva, palavras de profetas, parábolas de Jesus, vide os apocalipses proibidos. A heresia pode aparecer como uma contra-religião, mas inverter uma religião não é, ainda, segui-la? Entretanto, através dessas crises, a instituição religiosa parece bem atingida; ela se enfraquece de vez em quando, malgrado seus esforços para se reformar, responder aos críticos, exorcizar os pesadelos e encontrar um novo equilíbrio com a sociedade em mudanças. Equilíbrio cada vez mais precário e que faz, como eu disse no começo, vaticinar a morte de Deus. (...) Mas a morte de Deus não é necessariamente a morte do sagrado, se é verdade que a experiência do sagrado constitui uma dimensão necessária do homem. À medida que a igreja perde seus fiéis, vê-se pulular, em particular nas grandes metrópoles, as pequenas seitas esotéricas, os consultórios de astrólogos, clínicas de novos "curadores". Espécies de compromisso entre o racionalismo, que constitui o ideal de nossa nova sociedade planificadora, e a necessidade de religião, porque o esoterismo se funda sobre sistemas de idéias simbólicas bem ligadas - a astrologia tem caráter matemático que afirma nosso pensamento - os "curandeiros" opõem ao empirismo dos médicos uma teoria terapêutica utilizando a linguagem dos físicos: ondas, fluidos, átomos. Pode-se, desse modo, deixar-se guiar pela religião sem temor, já que essa religião se exprime, aparentemente, na linguagem mesma da ciência."

"Logo, a crise do instituído, ou seja das igrejas, não entranha em sua continuação uma crise do instituinte, quer dizer, da efervescência de corpos e corações, da buscada experimentação da dinâmica do sagrado. Apenas, as jovens gerações querem permanecer no fervor do instituinte sem ir até a constituição de novos instituídos, que o cristalizariam logo e o mineralizariam em novas instituições, de idéias sistematizadas, gestos estereotipados, de festa regulada e incessantemente recomeçada. Eis porque o sagrado de hoje se quer um sagrado selvagem contra o Sagrado domesticado das Igrejas."

O sagrado selvagem é o sagrado instituinte: "a imaginação no poder", e não "a razão no poder".

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