quinta-feira, 21 de fevereiro de 2013

Corpo e Palavra, Deleuze.

"Toda palavra é física, afeta imediatamente o corpo. O procedimento é do seguinte gênero: uma palavra, frequentemente de natureza alimentar, aparece em maiúsculas impressas como em uma colagem que a fixa e a destitui de seu sentido; mas ao mesmo tempo em que perde o seu sentido, a palavra afixada explode em pedaços, decompõe-se em sílabas, letras, sobretudo consoantes que agem diretamente sobre o corpo, penetrando-o e modificando-o. (...) Ao efeito de linguagem se subistitui uma pura linguagem-afeto neste procedimento da paixão (...)." Deleuze, Lógica do Sentido, p. 90 (Editora Perspectiva, 2007)

terça-feira, 19 de fevereiro de 2013

A Renúncia da Cruz

Partindo apenas de uma análise do discurso de renúncia proferido por Bento XVI, podemos encontrar o argumento principal para sua resignação: do ponto de vista de Bento XVI, é preciso mais força física, mais saúde para se exercer o ministério de São Pedro - elementos os quais, em sua opinião, ele não mais teria a seu dispor.

Assim, ao renunciar o posto a partir do argumento da "vitalidade", Bento XVI renuncia também o martírio; e se mostra em grande consonância com uma das características mais marcantes da nossa modernidade: a separação da dor da trama cultural. Como nos mostra Foucault, conquistamos a modernidade e a civilização a partir de um árduo processo de higienização e medicalização de um mundo em que toda doença, toda velhice e toda loucura deve ser encarceirada em conventos, asilos, hospitais e prisões. Todo pus, toda infelicidade e todo martírio devem, necessariamente, ser postos bem longe de nossos olhares civilizados e limpos. Assim, o homem moderno se divorciou da dor e da morte, e se armou com analgésicos, anestesias e processos cirúrgicos mais "felizes", pois menos "dolorosos".

A "escolha de vida" de Bento XVI, apesar de ter deixado muitos católicos e analistas boquiabertos, está também em completa consonância com algumas políticas que levou a cabo durante seu ministério. Uma delas, que pude acompanhar etnograficamente, diz respeito a processos de institucionalização (ou dito de outro modo, de adequação às normas da Igreja de Bento XVI) de algumas comunidades e institutos com propostas de vida consagrada. No caso analisado, o processo de institucionalização da Toca de Assis, pude observar a supressão dos elementos passionais, agonísticos e sacrificiais que compunham a ascese toqueira, em prol da criação de um modelo mais apolíneo e intelectual, em que o corpo que "morria de amor pela Santa Igreja" saía de cena para a entrada em uma vida religiosa mais "digna": menos sangue, mais livros; menos ritual, mais estudo; menos Paixão, mais administração. Um adeus à mística, ao êxtase, ao corpo supliciado por horas e horas de joelhos em adoração.

Do ponto de vista da cruz, a renúncia de Bnto XVI também nos fornece outra chave: o par de oposição "escolha pessoal" versus "vontade de Deus", tão caro a certa vertente do catolicismo. Sua decisão de renúncia não foi motivada por qualquer manifestação divina, visão profética ou êxtase místico, mas, pelo contrário, seu discurso de renúcia se apresentou sob a forma mais limpa e estéril de uma decisão humana, pessoal e racional. Um homem do nosso tempo, adepto da opinião de que "lugar de velho é no asilo" e "lugar de doente é no hospital" - ou, em seu caso, retirado a quatro paredes em um mosteiro, em oração. Características estas que colocam Bento XVI em profunda dissonância com seu antecessor, João Paulo II. Este, por sua vez, abraçou a virtude da cruz até a morte. Mesmo doente, com seus membros a tremer, com o Mal de Parkinson atingindo até a sua fala, ele estava lá, em seu posto de timoneiro da barca de São Pedro, gritando, conforme seu corpo o permitia, "avante, avante!". Um casamento com seu ministério de cruz, este presente de Cristo, até que a morte o separasse. Até então, era isso o que se esperava de um papa: aceitar beber o copo de vinagre oferecido por seus algozes, ir até o fim. O corpo ativo de João Paulo II foi, por muitos anos ao longo de seu ministério, um corpo doente, um corpo tremente, um corpo beirando a morte. Por outro lado, o discurso de renúncia de Bento XVI denota a necessidade de uma corporalidade papal preferencialmente "sadia", "jovem", distante da morte.

Tanto a política de Bento XVI como as escolhas que compõem sua biografia se colam, neste sentido, ao que culturalmente nomeamos, hoje, como democracia. As agonias de Santa Rita de Cássia já não estão mais na moda pelos corredores do Vaticano, as mulheres não aceitam mais apanhar de seus maridos, as crianças e até os fetos tem direitos, um papa pode escolher optar pela renúncia, pois afinal, somos cidadãos e cidadãos não se subjugam, antes, escolhem, e a escolha é pela vida. "Direito de morte e poder sobre a vida", diria Foucault.

A boa dose de ironia na atitude de Bento XVI está em renunciar a sua cruz em plenas vésperas da Quaresma - este período mítico tão marcante em que todos os católicos buscam vivenciar a salvação através de penitências e provações, num exercício do imitati christi. Ao renunciar a dor e a provação às vésperas da Quaresma, Bento XVI renuncia a própria Quaresma, denotando a este período outros ares de uma catolicidade que, do ponto de vista do Sumo-Pontífice, deve ser mais "saudável", menos crucificante.

quinta-feira, 14 de fevereiro de 2013

O banheiro do papa

Os católicos do mundo estão todos com a pulga atrás da orelha. Todos se perguntam, no calar da noite, antes de pregarem seus olhos, por que é que será que o papa desistiu do seu posto. Todos acham que há algo de muito grandioso e misterioso a ser desvendado. Cada qual tem sua hipótese escondida. Confissões inconfessas, mistérios indesvendáveis, fatos inexplicáveis: tudo o que a doutrina católica mais gosta e preza.

Mas eu já desvendei o mistério: obviamente que a culpa é do mordomo.