Folha de São Paulo, 20 de julho de 2010.
Opinião
MARCOS NOBRE
Medos públicos
A última comemoração do 14 de Julho na França foi marcada por desastres políticos vários. Forças armadas de ex-colônias desfilaram como forma de reparação e de reconhecimento, mas algumas delas devem reparação urgente em seus próprios países. Em uma disputa judicial entre herdeiros, surgiram fortes indícios de financiamento ilegal do partido do governo.
São questões graves, que acabaram fazendo com que passasse como acontecimento de menor importância a proibição de uso "de vestimenta destinada a dissimular o rosto". É uma proibição dirigida diretamente contra mulheres que usam véus islâmicos que cobrem todo o corpo.
A Revolução Francesa impôs uma única língua, o sistema métrico e um conjunto de valores a serem observados por qualquer pessoa que quiser ser cidadã. Foi o maior avanço histórico do milênio.
Incomparavelmente mais progressista do que o modelo europeu seu rival, o liberalismo inglês.
No Brasil não faltam defensores do republicanismo francês. Aliás, estabeleceu- se por aqui que "republicano" é sinônimo de "boa democracia".
Algo bom por definição.
O problema é que, hoje, o modelo impede avanços democráticos ao invés de fomentá-los. Defende ser preciso restringir previamente a liberdade dos cidadãos para alcançar igualdade no espaço público.
Mas, sob os "valores cívicos" impostos para alcançar a liberdade da cidadania, camufla-se a imposição de um padrão implícito de como se deve levar a vida. E toda tentativa de questionar substantivamente esse padrão social é empurrada para o terreno preferido (e regressivo) do liberalismo: o espaço privado.
Ora, se o objetivo é proteger as mulheres de um costume considerado atentatório aos direitos da pessoa humana, proibir o uso do véu em público é caminho seguro para que essa prática continue.
Porque o resultado é que essas mulheres vão deixar de frequentar os espaços públicos. E, recolhidas ao âmbito doméstico, vão se tornar invisíveis. Não serão mais solicitadas a explicar por que, afinal, usam o véu. Sua atitude não será mais questionada. E invisibilidade e falta de questionamento são os abrigos naturais para tradicionalismos de todos os matizes.
Sob o neoconservadorismo de Sarkozy, a defesa da República tornou-se um fim em si mesmo. Tomou o lugar da defesa de espaços democráticos de autonomia para pessoas e grupos sociais.
São medos públicos de aprofundar a democracia que expulsam os problemas para a invisibilidade dos lugares privados. O preço que cobram é o maior possível: a indiferença.
MARCOS NOBRE escreve às terças-feiras nesta coluna.
terça-feira, 20 de julho de 2010
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