quarta-feira, 14 de janeiro de 2015

Experiência Religiosa Contemporânea - doença, cura e religião

Reverendo Ivaldo Salles, ministro da Igreja Anglicana e capelão da Capelania do Hospital Correia Picanço, especializado em atendimento a doentes de Aids em estado terminal, oferece uma análise muito arguta do estado atual da experiência religiosa contemporânea. A entrevista está na edição especial do Boletim ABIA (n.o 56, Novembro de 2008), com o dossiê "Respostas religiosas à epidemia de Aids". Segue excerto:

"Quais são os desafios do seu trabalho?

O grande desafio não é mais o castigo de Deus,
nem peste gay, mas é, hoje, o problema da
adesão aos medicamentos. Nós estamos
vivendo hoje num momento pós-cristão,
agente não está mais naquele momento da
Teologia da Libertação. Infelizmente nossos
heróis foram expulsos, outros foram mortos,
então a gente não tem mais aquele foco bem
definido como Frei Beto trazia, como Leonardo
Boff trazia. Então o foco do religioso hoje é a
prosperidade. Uma ênfase na prosperidade e
na cura e essa ênfase traz também uma subje-
tividade, que é a questão assim, você não
precisa mais tomar medicamento, Jesus vai
curar você. Uma forma de crer não racional,
mas na perspectiva de um misticismo
semântico e anti-científico.

Então, a idéia da cura, da promessa de cura, faz
com que as pessoas abandonem o tratamento,
e no hospital a gente vai ter que desconstruir
todo um equívoco religioso, tanto sobre adesão
a terapia aos antiretrovirais ( TARV), quanto ao
uso correto e responsável do preservativo em
todas as relações sexuais.

Mas como esse paciente lida com a
medicação?


Por causa das muitas promessas de cura, de
que “quem aceita Jesus nunca fica doente, pois
doença é sinônimo de pecado”
, aqueles que
abandonam o tratamento acabam no
internamento do Leito Dia ou do isolamento
em decorrência de uma pneumonia, tuber-
culose, meningite e outras doenças graves. Aí
se decepcionam com seu líder espiritual, com
sua comunidade de fé e até mesmo com Deus.
São muitos os pacientes que sofrem algum
tipo de interferência religiosa nesse tratamen-
to. Por isso, há muitos que abandonam a terapia
e aí tem todo um problema de como fazer
com que a pessoa não abandone sua fé. Neste
sentido, a capelania contribui para que a pessoa
aprenda a lidar com a terapia e com sua fé ao
mesmo tempo. A sua escolha e prática religiosa
deve fortalecer a sua adesão aos medicamen-
tos. A grande sacada é isso, entende, a Cape-
lania é uma terapia complementar. Fazer ade-
são não é brincadeira, tem muitos efeitos cola-
terais — náuseas, vômitos, alucinações,
lipo-distrofia — são muitos medicamentos e
esque-mas terapêuticos, às vezes falta
medicamento...

E a religião, o que traz para as pessoas?

Vai ajudá-las a manter a esperança, a manter a
fé, a buscar no Ser Supremo uma saída para
viver com dignidade, com auto-estima, a amar,
a sonhar e ter esperança que o sol vai brilhar
amanhã. A capelania entrou para poder ser um
espaço de acolhida, de escuta e de ação no
monitoramento da saúde e também de resgate
da terapia. Então a gente troca, o capelão, que
ele não é psicólogo, não é assistente social,
nem é médico. Mas um orientador espiritual,
um conselheiro profissional de teologia que
vai somar com o psiquiatra, com o psicólogo,
com o infectologista, com o farmacêutico, com
o enfermeiro, enfim, vai somar junto a uma
equipe de trabalho para que o paciente resgate
a sua terapia. Se está internado no hospital,
certamente é porque não estava fazendo a
terapia adequadamente. Então, a maioria dos
internamentos em HIV/Aids no Correia Picanço
e nos outros hospitais é problema de adesão
aos medicamentos. E preciso ter uma equipe
(multi e inter) profissional interagindo com
respeito, com tranqüilidade, com responsabi-
lidade e capacidade nesse trabalhar para que o
paciente volte a tomar a medicação e tome
essa medicação livre, espontaneamente e corretamente."