quinta-feira, 16 de agosto de 2012

"Tal situação indica que a antropologia da "crença" é essencialmente um exercício de ficção científica, fundamentada na (aparentemente indelével) convicção de que o substantivo "crença", o verbo "acreditar", ou sua versão substantivada "crer" (le croire) podem ser utilizados como conceitos analíticos. Isto, entretanto, não é possível, e por uma simples razão: "acreditar" é um verbo de atitude, que pode expressar certeza assim como pode expressar suposição, ou seja, graus abismais - entre a quase-certeza e o quase-ceticismo. (...) Precisamos admitir: enquanto os antropólogos insistirem em falar de "crença", eles não serão mais do que narradores ordinários trocando palavras por prazer, ao invés de serem cientistas sociais em busca de exatidão. A situação poderá se tornar menos problemática se os antropólogos pararem de usar a idéia de "crença" como um conceito analítico e começarem a listar e descrever as milhares de atitudes nativas flutuantes em relação a feitiçaria, e depois esboçarem suas conclusões a partir daí." (Jeanne Favret-Saada, "Death at your heels: when ethnographic writing propagates the force of witchcraft" (tradução minha), In HAU: Journal of Ethnographic Theory 2 (1), 2012, pp. 45-53.)



A feitiçaria no Bocage provoca uma suspeita fundamental da fragilidade do contrato social; e simultaneamente promove meios de consolidar este contrato social através de perpétuas atividades de grupo e de reconstrução de si (ou do eu), atividades que são também frágeis e precárias. "Em suma, talvez o Bocage nos forneça um salto para um complexo cultural que cultiva uma modesta esperança de uma solidez do social, o qual se esboça através de uma ontologia mínima; ao invés destes mundos nativos encantados, com seus pensamentos ultra-sofisticados e suas luxuosas "florestas de símbolos" que os antropólogos tão infalivelmente descobrem e exaltam." (Jeanne Favret-Saada, "Death at your heels: when ethnographic writing propagates the force of witchcraft" (tradução minha), In HAU: Journal of Ethnographic Theory 2 (1), 2012, pp. 45-53.)

domingo, 12 de agosto de 2012

Sobre a Dor

Em São Paulo, fui ao médico-parteiro, o homem que fará o meu parto, o máximo de adesão ao parto normal que encontrei no meio médico por estas terras. Pois bem, ele sempre me pergunta se tenho dor de cabeça e se precisei tomar remédio. Finalmente as dores de cabeça chegaram, e ele perguntou se tomei remédio, disse que não.

Ao passo que minha mãe, que estava ao meu lado, lhe pergunta: o que faz com a dor de cabeça?; querendo perguntar, na verdade, se é um mal sinal ou mal sintoma. O médico-parteiro responde, simplesmente: Toma um Tilenol. Minha mãe reitera, dizendo que eu só me submeto a remédios quando estou realmente morrendo. E então diz o médico-parteiro, do alto de sua sapiência medicinal: Deixa de ser masoquista. Toma um Tilenol e pronto.


Passam-se uns dias, e estava eu lendo sobre os antigos índios do Grão-Pará. Havia um desejo pela dor ali, uma valoração pelo castigo. E então me lembrei de Foucault, e Deleuze, e Bataille, grandes caras que nos mostram toda a saga ocidental-civilizacional que, juntamente com a invenção da Medicina e dos Cuidados de Si, vem banalizando a anestesia, dando adeus ao corpo, vem construindo um corpo sem dor, remediado. Foi se negando a experiência da dor, por séculos e séculos.

E então encontrei-me com a Antropologia da Dor. Artigo interessante de Antonio Guerci e Stefania Consigliere que saiu na |Revista Ilha de 1999: "Por uma antropologia da dor. Nota preliminar."

Dizem eles, dentre outras coisas:

"Mas desde que a medicina se esforce em separar a dor da trama cultural, encontrar-se-á com a dificuldade (ou a incapacidade) de tratar grande número de dores invalidantes. E mais, o limiar da dor baixa na medida em que os analgésicos se banalizam. A procura por anestesia aumenta também em função da desaparição de valores outrora associados à resistência pessoal à dor."


Por outro lado, o martírio tem andando na moda, tal como podemos ver nas tatuagens, nos regimes malucos, nos carismáticos católicos. É um martirizar-se para atingir uma felicidade. De repente, a cosmologia indígena da dor se parece com a cosmologia dos monges do kung fu: apanhar para saber apanhar, levar na cara para ser um forte e ganhar cada vez mais resistência frente às porradas da vida; frente à peia terrestre.


Voltando à medicina ocidental, creio que pelos séculos anda viajando: a cura não tem nada a ver com a anestesia. São muitas e muitas medicinas tradicionais a nos mostrar o exato contrário: o alcance da cura exige a passagem pela dor - e dor extrema. Curar é ganhar da dor. Cura como guerra, como batalha. Todos-querem eliminar a dor, mas os caminhos tomados são distintos. Afastar a dor se anestesiando (a medicina ocidental anestesia os partos, as depressões, os lutos, com seus remédios tarja preta), ou expurgar a dor pelo martírio mesmo (a medicina tradicional vai lá na raíz do sofrimento, destrincha o sofrimento e o cospe feito sangue escarrado).



quarta-feira, 8 de agosto de 2012

Devaneios ou A Pisa Paraense

- Dou-lhe uma pisa!

E tudo era tão bruto, tal como a pedra bruta, a pedra não-lapidada. Simples assim, como uma bofetada na cara; ou melhor dizendo, como umas quatro bofetadas bem dadas na minha cara. A pisa paraense, muito usada como remédio pra colocar cabeça alheia no lugar. E carregar o bucho por nove meses vendo o rio passar, e as crianças crescendo e sendo levadas por sua bruta e alegre correnteza, e guerrear, que é a tradução para viver, e significa simplesmente desarmar sua rede e fabricar o peixe com açaí para o almoço ao som de um carimbó caribenho.


Já em São Paulo, tudo ganha os ares da produção. Produzir, produzir; e a coisa foi andando nesse bonde através do século que chegou a tal ponto que uma simples reuniãozinha na casa de amigos significa um "momento de produção"; ou um simples mutirão para construir um barracão atrás de casa é traduzido, pelos paulistas, por "Mini-Curso de Bioconstrução" - e não se engane: você vai ter que pagar uma contribuição para poder "aprender" a "fazer um mutirão" ecológico-socialista.

E assim, até o ecologismo por aqui vira produção, e plantar uma árvore significa se promover, e se promover é uma produção de si mesmo, que vai lhe trazer consequencias financeiras.

Escrever um esboço qualquer, de musica ou poema ou uma besteirola de um recadinho de geladeira, o paulista vai chamar de "minha produção intelectual", ou "minha produção artística". Senta na frente de uma tela de computador e se vê como o grande produtor, o grande trabalhador, aquele que constrói o Brasil varonil e faz o país andar. Se a pessoa tem um dom de cura, ou de massagem, ou de fazer um parto; bem, isso em São Paulo se torna uma carreira, um ganha-pão, e aquele quartinho de costura lá no fundo da casa em São Paulo é "ateliê", onde rolam "mini-cursos" de "aromaterapia", "musicoterapia", com os preços módicos que os paulistas adoram pagar e estão acostumados.

(É a distinção, já observada por Joana Overing, entre uma "sociedade regida pelo status" (=São Paulo, centros urbanos de razão ocidental) e uma "sociedade regida pela razão prática do cotidiano" (=Amazônia). Nas primeiras, importa a legitimidade adquirida por um "poder" externalizado e institucional (= um diploma, um curso, um certificado). Isso é o que "faz a pessoa", a torna humana. O que a "faz pessoa" é algo externo a ela. Nas últimas, importa a eficácia das atividades pessoais cotidianas (como a arte de produzir alimento, por exemplo), adquirida por uma ascese estritamente pessoal. O que "faz a pessoa" é a pessoa mesma, ou suas atividades; e a experiência pessoal nestas agências. Algo como a distinção entre dom e profissionalização.) Povos prescritivos versus povos performativos, tal qual conceitualizou Marshall Sahlins.

Daí é que me vem a saudade da pisa paraense, do sobe aí no jambeiro e pega uma fruta, do senta aí e pesca logo um mupará, do boraembora. Rude e simplesmente. Sem fuleragem.


ai, que meu amor é guerra sem fim, é desapegar-se de mim, me entregar a alucinação de suas águas e perder-me.


minha paixão pelo Norte é mística de São João da Cruz e Santa Teresa D'Ávila.








sábado, 4 de agosto de 2012

"O brasileiro é um feriado." - Nelson Rodrigues, Sem amar, nem odiar (Crônica)

quarta-feira, 1 de agosto de 2012

"... qualquer um tem seus íntimos pântanos, sim, pântanos adormecidos. É preciso não despertá-los. Mas certos acontecimentos acordam a lama do seu negro sono. Quando isso acontece, a alma começa a exalar o tifo, a malária, e a paisagem apodrece." (Nelson Rodrigues, Reze menos por mim (crônica))